Quem é a tua criança?
Tem sido cada vez mais comum receber nos consultórios de psicologia crianças cheias de adjetivos, colocados pelos adultos à sua volta, com a expectativa de que tais adjetivos sejam transformados pelo profissional psicólogo. É uma criança desobediente, desatenta, hiperativa, descontrolada, ansiosa, medrosa, agressiva, inquieta, impulsiva e por aí adiante.
Ao mesmo tempo é observado, que esses mesmos adultos têm cada dia menos tempo de convívio com essas crianças. O que pode estar atrelado ao fato de uma maior abertura para a adjetivação que caracteriza causas de comportamentos, em lugar de uma compreensão sobre os modos de ser e de se mostrar dessas crianças, a partir de suas experiências. Compreensão exige tempo e disponibilidade para ser/estar com o outro de modo aberto ao que acontece. E o mundo contemporâneo tem dificultado esse tempo de qualidade, apresentando um modelo de vida produtivista e cheio de excessos.
Nesse caminho trago reflexões realizadas pela professora Maria Marcondes Machado, em artigo publicado em 2013 intitulado: “Fenomenologia e Infância: o direito da criança a ser o que ela é.” Nesse estudo ela enfatiza o excesso de tecnicismo que há nas relações adulto-criança da atualidade. Nessa vista, quando se coloca a técnica na frente da criança, não é possível se relacionar com quem ela é, mas com todas as definições e explicações que se dá sobre ela. Para Machado “O encontro adulto-criança é um acontecimento em gesto e palavra”, sendo assim “é preciso aceitar as crianças tal como elas se apresentam.”
A autora diz que o psiquiatra Raul Guimarães Lopes (1993) escreveu que “Educar é esperar” o que se convenciona diferente na atualidade, visto que muitas vezes o educar está para formar e projetar aquilo que se quer do outro. Permitir que a criança seja ela mesma, é não impor sobre ela nosso modo adulto de sermos, podando-as de serem crianças, com as nossas regras de pura realidade. “(...) cabe a nós propiciar espaços potenciais de brincadeira e de jogo, playgrounds de crenças compartilhadas, de muitos aviões de papel e dobraduras de águias e galinhas. Colocaremos grades nas janelas, sim, pois, adultos que somos, sabemos que literalmente crianças não voam… Mas, ao mesmo tempo, permitiremos saltos, cambalhotas, balanços que voam, cordas com pneus nas árvores, etc.: modos de voar da criança humana.”
A clínica psicológica nesse sentido, se revela como espaço possibilitador da aparição da criança enquanto ser singular. E como pode se dar isso? De modo aberto à ludicidade e ao encontro entre criança-terapeuta, sem a necessidade de uma direção sobre a ação desta criança no acontecimento clínico. “Menos intervencionismo adulto geraria crianças mais autônomas, protagonistas, performers de suas existências.” Menos controle, menos imposições e mais abertura ao mostrar-se de cada criança. No entanto, tal postura não deve ficar restrita ao espaço da clínica, mas se estender para as diversas relações estabelecidas entre adultos-crianças.
O que se mostra como desafio para isso, é o modo como a sociedade contemporânea tem vivido. Cada vez mais adultos ocupados, cansados, super atarefados. Cada vez mais crianças são cuidadas a partir de modelos que rompem com suas possibilidades criativas, tendo de cumprir agendas, regras e padrões inflexíveis. Não por acaso há uma exacerbação de busca de atendimentos infantis relacionados à saúde mental, bem como um número exorbitante de medicalização de crianças.
É fácil encontrar um arsenal infinito de direcionamentos de como cuidar de uma criança em nossa sociedade. Inúmeros especialistas dando orientações e conselhos sobre os “melhores” caminhos. Inúmeros pais ansiosos, culpados, inseguros e sem saber por onde seguir com suas crianças. Talvez a máxima seja - conhecer quem é essa criança - ao invés de incorporá-la nas muitas definições especializadas de como ela deve ser. Portanto, fecho com Machado ao dizer que: “Sentir-se real é o incomparável benefício daquele a quem permitem ser o que se é.”
Suelane Alves - psicóloga
CRP 02/16654